Certo diabo apaixonou-se por Deus sem nunca tê-lo visto. Depois de
preparar-se por longo tempo, e com a ajuda de um informante, conseguiu
infiltrar-se no complexo celeste e foi comprando com subornos, nível
após nível, a vasta hierarquia de segurança que o separava da presença
divina. Esse trajeto demorou muitos anos.
Naquela tarde o diabo molhou a mão do penúltimo intermediário e
adentrou a ante-sala do trono por uma portinha lateral de serviço, junto
da qual o esperava um anjo de cavanhaque e costas muito largas.
– Entre de uma vez – ordenou o anjo, e fechou a porta logo em
seguida. A vinte passos deles, alto como uma montanha, dormia em sua
cadeira o guardião da sala do trono.
Sem qualquer outro intercâmbio eles transpuseram o espaço até junto
da porta da proposição, que está sempre fechada e cujas folhas
esculpidas em madeira e revestidas de ouro têm cento e quarenta e quatro
mil anos-luz de altura.
– Então – disse o anjo, quando estacaram diante da porta e
avaliaram-se pela primeira e pela última vez – é você o diabo que
apaixonou-se por Deus e vem procurando uma oportunidade de encontrar-se
com ele.
– Apenas me poupe desse ar de superioridade moral – respondeu o
diabo, ignorando a pergunta. – porque você sabe muito bem que somos
muito parecidos. Nós no inferno odiamos tanto o pecado quanto vocês
deste lado do abismo. Se estivesse prestando atenção, perceberia que são
só os pecadores, os apóstatas e réprobos que nós atormentamos. Só os
pecadores podem ser tentados, e só eles conhecerão a aflição da nossa
miséria e do nosso desespero. Os santos, os valorosos e puros despertam
apenas nossa admiração; nesses não ousaríamos tocar.
– Ou talvez seja nisso que você quer que eu acredite.
– Acredite no que quiser – pediu o diabo. – Apenas saiba, porque não
tenho outra a pessoa a quem dizer, que foi justamente esse amor pela
integridade e esse desprezo pela corrupção que fizeram com que eu me
apaixonasse pela imagem divina.
O anjo deu de ombros e empurrou a porta, que era tão pesada e vasta
que foram necessários mil anos para abrir uma fresta pela qual o diabo
pudesse passar. A porta rangeu formidavelmente, mas o guardião em sua
cadeira não se moveu nem despertou.
O diabo apertou nas mãos do anjo o valor que haviam ajustado, e fez
menção de entrar na sala do trono pela estreita passagem. No último
instante o anjo segurou-o pelo braço.
– Só preciso que você não ignore, porque quero ser honesto com você –
disse o anjo, – que transposta esta porta a distância até o trono é
vasta ao ponto do incalculável, e que quando finalmente chegar você
estará velho, cansado e desorientado. Não só isso, mas encontrar-se com
Deus terá para você um efeito inteiramente descaracterizador. Bastará
contemplar pelo mais breve instante a divina presença para você ser
imediatamente consumido por ela. Você não terá oportunidade de admirar a
imagem de Deus ou de declarar o seu amor. Você terá gasto a sua vida
inteira para chegar até Deus, e irá perdê-la para sempre no instante em
que o encontrar. Se deixo você passar é porque sua entrada não
representa risco para Deus; mas representa um horrendo risco pra você.
– Eu sei – disse o diabo, e seu rosto estava impassível.
– A divindade certamente não ignora que estou transgredindo deixando
você entrar; porém Deus está tão distante que quando sua punição chegar
já terei há muito deixado de existir. São poucos os que se dispõem a
gastar a sua longevidade transpondo o espaço até ele.
E soltou o braço do diabo, que atravessou o limiar e desapareceu sala do trono adentro.
O trajeto até o trono de Deus demorou várias eternidades. As estrelas
que o diabo trazia nos olhos se apagaram, e as flores perenes que
trazia como presente converteram-se em sequidão e decrepitude e ele
deixou-as no caminho, e o trono não chegava. Galáxias nasceram e
morreram, e à sua sombra foi-se encurvando e distorcendo a espinha
dorsal de todas as coisas, mas o diabo continuou andando. Atravessou
resignadamente o silêncio das eras e a esterilidade dos mundos, e quando
alcançou a outra extremidade da sala estava velho e cansado, e não
trazia mais consigo nenhuma das certezas que lhe haviam iluminado o
caminho.
Para sua surpresa, quando chegou ao fim do caminho não havia trono
algum, nem qualquer indício da residência de Deus: só uma porta baixa
com uma cortina barata de miçangas, e por trás dela um esplendor. O
diabo bateu palmas uma vez, depois duas, e por fim uma voz o convidou a
atravessar.
Ele afastou com as mãos as fileiras de contas, abaixou a cabeça e do
outro lado encontrou um homem decrépito, desdentado, seminu e cheio de
chagas, dormindo em imundícia sobre caixas de papelão numa avenida da
cidade grande.
O diabo estava velho e cansado, mas seu rosto de diabo ainda era
belíssimo, o corpo forte e obediente, os trajes impecáveis e magníficos.
Ele reconheceu Deus imediatamente, ajoelhou-se sem qualquer recato
sobre a imundícia, tomou-o nos braços e beijou-o longamente na boca sem
dentes.
Depois tirou a capa e fez menção de cobrir com ela a nudez divina, mas Deus deteve sua mão com um braço raquítico.
– Não, não faça isso! Minha nudez e minha velhice e minha fome são
meu brasão nobiliárquico, e decidi há muito tempo não tentar, até o
final, seduzir os homens com outro recurso.
– Mas Deus – implorou o diabo, – eu atravessei eternidades e dormi no
vácuo entre as estrelas só para poder finalmente declarar-lhe o meu
amor! Permita-me vesti-lo, alimentá-lo e acalentá-lo, para que minha
jornada não tenha sido em vão! Permita que eu o carregue de volta até o
Paraíso, onde os santos lhe tratarão as chagas, onde os anjos lhe
alimentarão de pão e onde a luz sem mácula da santidade lhe restaurará a
saúde e a glória!
Mas Deus apertou a mão do diabo e olhou-o firmemente nos olhos.
– Não, não, mil vezes não! Não posso retribuir o seu amor, porque
minha paixão é outra – e nesse ponto Deus apertou ainda mais o cingir
dos dedos, – mas eu aceito o seu amor. Eu o aceito e o perdoo, como você
vai perdoar o meu. A mim também disseram que a viagem seria
impossivelmente longa e que, quando eu chegasse, aquele que amo não
seria capaz de me reconhecer. A mim também disseram que o encontro com
meu amado representaria o meu imediato e derradeiro fim, e que tudo que
há de bom e virtuoso em mim seria imediatamente consumido pela minha
decisão de partilhar da sua condição. A mim também disseram que neste
trajeto o risco seria apenas meu, e que eu estaria derramando em vão o
mais precioso amor por quem se mostraria inteiramente incapaz de
aceitá-lo e de retribuir.
E o diabo chorava convulsivamente.
– Mas – e Deus levantou sobrancelhas patéticas e sorriu com três ou
quatro dentes, – valeu à pena. É por isso que convém até o final que o
homem me veja assim, sem qualquer disfarce, para que possa quem sabe me
reconhecer e me amar.
O diabo então sentou-se em seus trajes magníficos ao lado da divina
miséria, e dormia abraçado a Deus para proteger-lhe do frio, e exultava
quando um homem parava um instante para deitar aos seus pés uma moeda ou
um pedaço de pão. E de noite acordava sobressaltado, quando não tinha
certeza se ainda ouvia no divino peito o divino coração.
Paulo Brabo
Fonte: http://www.baciadasalmas.com/2011/o-diabo-que-se-apaixonou-por-deus/
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